Trata-se de um exercício curatorial que propõe colocar no limite, a ideia de público dentro do território da arte contemporânea. As exposições, de modo geral, são estruturadas como plataforma de socialização da arte, de modo que o espectador torna-se um dos pontos de extrema importância para as instituições. Dessa forma, o Exercício Ka’a, visa constituir um conjunto de proposições artísticas dentro de uma espacialidade na floresta (localizada no Centro de Arte Arapuca, Praia da Arapuca, Conde-PB) de modo a constituir como foco expositivo, um público não-humano.
Trabalhar com a ideia de não-humano, parte das noções de perspectivismo colocada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, além das discussões do conceito “antropoceno” amplamente pontuadas por pensadores indígenas como Ailton Krenak, Kaka Werá, Sonia Guajajara entre outres, pela qual, situam humanos, plantas, coisas e animais como seres dentro de um plano horizontal ausente de hierarquias, diferente da perspectiva ocidental da qual coloca o Homem, como uma verticalidade acima da natureza. De acordo com Viveiros de Castro em seu livro A inconstância da alma selvagem (2017):
Em suma, os animais são gente, ou se veem como pessoas. Tal concepção está quase sempre associada à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (uma roupa) a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transepecíficos, como os xamãs (VIVEIROS DE CASTRO, 2017).
Esta perspectiva descrita pelo antropólogo não fala de uma diferenciação do humano a partir do animal, como explica a mitologia evolucionista moderna. Dessa forma, a condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. A grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura, ou seja, os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos. Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos: os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais.
A partir desta perspectiva, quebra-se a noção moderna que cinde a noção de natureza e cultura. Se planta e animais são colocados como sujeitos, a paisagem natural “selvagem” é tido como cultura tanto quanto qualquer outra tecnologia desenvolvida pelo Homem ocidental. Estas evidências mostram, por exemplo, que os modos indígenas de habitação, não só deixam marcas profundas na paisagem, mas também desempenham um papel essencial na formação da ecologia florestal. Dessa forma, as extensões de florestas e savanas da qual classificamos como “natural”, são na verdade, paisagens culturais com um passado humano profundo. Portanto, a estrutura botânica e a composição de espécies nas florestas, trata-se uma herança do “design” de povos originários. Várias sociedades indígenas não apenas reconhecem essa natureza construída da floresta, mas também estendem os limites desse meio cultural à multidão de seres não-humanos abrigados pela floresta. Os povos não ocidentais ao redor do globo, experimentam suas relações com o meio ambiente e com outros seres como um continuum dentro do qual os humanos são elementos de um vasto espaço social que inclui também animais, plantas e espíritos.
Dessa forma, a presente proposta, instiga o exercício criativo em co-autoria com a dinâmica da natureza, focado para um público de não-humanos. Propõe a partir da irracionalização e da desumanização, a criação de estruturas, ações e objetos das quais tem como perspectiva e diálogo, a complexidade infinita de seres e dinâmicas que habitam e constituem a floresta.





Referências:
TAVARES, Paulo. In the forest ruins. In: e-flux. 2018. Disponível em: https://www.e-flux.com/architecture/superhumanity/68688/in-the-forest-ruins/. Acesso em: 2 dez. 2019.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
WERA, Kaka. Tupã Tenondé: A criação do Universo, da terra e do homem segundo a tradição oral Guarani. São Paulo: Editora Pereirópolis, 2020.
YZUMIZAWA, Allan. Sintropia e os anti-monumentos. Disponível em: https://operceptos.wordpress.com/2020/02/17/sintropia-e-os-anti-monumentos.