Entrevista com a pesquisadora, curadora , educadora e ativista Luciara Ribeiro, realizado em 26/01/2021.
Allan Yzumizawa: Como foi o processo da sua formação em História das Artes?
Luciara Ribeiro: A minha formação é resultado de várias coisas que aconteceram na minha vida, portanto preciso voltar um pouco. A escolha por História da Arte veio quando eu cursava o Ensino Médio, com a minha professora de artes chamada Regina. Naquele período, eu mudei de uma escola localizada na periferia de Mauá para uma escola pública de referência, localizada no centro da cidade, a Visconde de Mauá. Lá, encontrei outro modelo de escola, uma educação com traços mais libertários, e a professora Regina, fazia uma junção de teoria e prática para as aulas de artes, algo extremamente novo para mim. Nunca tive uma aula teórica de artes e fiquei encantada com aquilo. Lembro que ela trouxe uma enciclopédia com vários volumes sobre a História da Arte e tínhamos que escolher um movimento artístico para fazer uma releitura sobre aquilo. Na ocasião, escolhi o Romantismo, pois estava encantada com Delacroix.
Para esta atividade proposta pela professora, peguei o livro Cidadão de Papel, pois achava que havia alguma relação com as obras do Delacroix. Apresentei para professora e ela me deu uma devolutiva positiva, dizendo que o que tinha feito era genial. A partir daquele momento, ela recomendou que eu deveria fazer artes e logo começou a me incentivar. Me levou pra conhecer a Pinacoteca, as Bienais e outros museus… Muitas vezes, me chamava de lado e apontava para os educadores das instituições, aconselhando que se eu estudasse algum curso voltado às artes, poderia ocupar aquela função.
Por conta de toda essa experiência que surgiu a minha motivação para estudar artes. Tempos depois, comecei a pesquisar os processos e os caminhos para entrar numa universidade pública, e desse modo, decidi fazer cursinho. Naquela época, eu já fazia parte de diversos movimentos sociais de Mauá, e isso me proporcionou a aproximação com o cursinho popular.
Prestei Artes Visuais na Unicamp e na USP. Entretanto, haviam comentado o surgimento de um curso de História da Arte na UNIFESP. Não tinha um interesse inicial, por conta de acreditar e de gostar da parte prática que as Artes Visuais envolviam, mas, mesmo assim, me inscrevi. No final, não consegui passar em Artes Visuais nas Estaduais por conta das provas de habilidades específicas. Mas isto pode ser um outro capítulo…
AY: Mas pode falar. Gostaria de saber. Como foi sua experiência em fazer as provas de habilidades específicas?
LR: Foi traumático. Tenho uma amiga que queria prestar essa prova também. Na época, a gente usava muito o Orkut, e sempre víamos as pessoas comentando coisas que a gente não fazia ideia. Diziam que estavam fazendo curso com o “fulano”, que comprou “tal material”, “tal livro” e eu lembro que eu lia tudo aquilo, e me questionava “O que eu tô fazendo aqui tentando prestar este curso?” Aquilo não fazia parte do meu contexto, e isso me deixava um pouco deslocada. Mas no cursinho popular, os professores tentavam sempre nos motivar para realizarmos as prova de qualquer jeito.
A processo começava às 8 h, e para chegar nesse horário, tínhamos que acordar às 3 h para pegar o primeiro ônibus. Foi bem difícil chegar na USP em um domingo saindo da periferia de Mauá, mas no fim, deu tudo certo. Chegando lá, haviam muitos candidatos com os seus pais, em um clima de família, além de segurarem pastas guardando uma quantidade absurda de materiais artísticos. E nós, suadas, com um pão na mochila e um lápis 6B na mão. Me sentia muito humilhada por perceber a crueldade das diferenças de classe no Brasil dentro do processo de ingresso nas universidades. Quando entramos na sala, os demais candidatos começaram a tirar seus materiais da pasta… hoje reflito, e acho que isso devia ser proibido pois os materiais precisam ser os mesmos para todes. Na verdade, acho que nem deveria ter prova de habilidades específicas, isso é um horror e um desrespeito. Na época eram os alunos da graduação dos cursos de artes dessas instituições que aplicavam as provas, e quando eu olhava para eles, não tinha identificação nenhuma. Eram, em sua maioria, brancos de classe média, assim como os candidatos que chegaram com suas pastas. Essas semelhanças deixavam explícito de que aquele lugar não era para mim. Durante a prova prática, entrava um ou outro professor que ficava olhando o que estávamos fazendo, e aquilo foi uma segunda agressão para mim. Em um desses momentos, eu simplesmente paralisei e não consegui seguir por alguns minutos. No fim, finalizei e até gostei do resultado. Tenho consciência de que ali não havia o rigor “técnico” que exigiam, mas, afinal, aquele era o processo de acesso ao curso… Naquele dia, eu e minha amiga, chegamos em casa só as 22h. Então fiquei pensando o que aquela prova estava avaliando… ou seja, não considerava todo o esforço que fizemos. No fim, não fomos chamadas, aí fui para a minha segunda opção, que cheguei a passar, mas não quis fazer o curso, então decidi fazer História da Arte, na UNIFESP, onde eu também tinha sido aprovada.

AY: Como foi a sua experiência quando entrou no curso de História da Arte?
LR: Eu lembro que quando cheguei na minha primeira aula de História da Arte, foi uma aula magna com o Jorge Coli, no auditório do campus. E aí, não fazia muita ideia do que era História da Arte e aquela aula com o Coli tinha um cunho bem filosófico… Eu lembro que não conseguia o que ele estava dizendo, era algo bem abstrato pra mim. Hoje entendo que a minha dificuldade não estava relacionada com a minha capacidade intelectual, mas com o jogo de poderes na construção das bases do pensamento acadêmico, que exclui os conhecimentos e lógicas periféricas. Aquele senhor sentado no auditório, demonstrava um status que eu desejava também. Eu o olhava e pensava: eu quero estar no lugar dele em algum momento da minha vida (risos). Mas não somente pelo o status, mas também por gostar de História da Arte, por almejar construir conhecimentos que fossem partilhados e por construir referências para outras pessoas.
Na minha primeira aula oficial do curso, lembro que um professor, que se não me engano foi o Jens Baumgarten, trouxe o livro do Hans Belting, O fim da História da Arte. Ele dizia que aquele livro já tinha sido lançado há alguns anos e provocava sobre o fim de uma disciplina que nós estávamos ironicamente começando a estudar. Desse modo, perguntou para nós se aquilo não era estranho, e se de algum modo, não era algo de se preocupar. Naquele momento, comecei a pensar: “que tiro no pé que eu dei?”
E o clima de incerteza se completou quando a maioria dos alunos, ao se apresentarem, comentaram que História da Arte também eram suas segundas opções. A partir destes relatos constatei que, além da suposta morte da História da Arte, nossas escolhas do curso também permeavam um certo clima de segunda opção (risos). Isso foi bem interessante. Óbvio que, aos poucos, fomos nos envolvendo com o curso e entendo que a morte da História da Arte era algo conceitual e que outras possibilidades dedicadas a ela, poderiam surgir conosco.
Outro fator que acho importante para pensar sobre esta primeira turma é que, por sermos os primeiros, pudemos construir o curso em conjunto com os professores. Haviam poucos neste período, então nos aproximamos bastante deles, ajustando nas dificuldades, trocando, etc.
Naquela época eu já entendia muitas das questões que atravessavam a minha racialidade, classe e território de origem e formação. Como eu já participava de coletivos, tanto de movimentos negros quanto de outras dimensões sociais, essa dimensão ativista foi me guiando dentro do curso, fui buscando os grupos ligados aos movimentos estudantis e tentando construir os meus lugares.
Lembro que na disciplina de Laboratório que foi ministrada pelo professor André Tavares, tivemos um exercício de catalogação onde ele sugeriu que escolhêssemos qualquer objeto para catalogar. Naquela época eu frequentava muito a “pracinha” da República. Num domingo, fui até lá, e encontrei com um grupo de imigrantes senegaleses que vendiam alguns produtos de origens africanas, como máscaras talhadas, tecidos, adereços, etc. Comecei a conversar com eles e peguei amizade. Naquele momento, decidi documentar as máscaras que eles vendiam. Cataloguei tudo, e foi neste processo de catalogação que percebi que não sabia nada sobre as máscaras, então comecei a pesquisar sobre. Fui ao MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia da USP), me encontrei com a Lisy Salum, que na época era uma das pesquisadoras mais conhecidas da área. Posteriormente, apresentei o resultado para o André e ele ficou chocado com o esforço e a profundidade. O André começou a comentar sobre as pesquisas em Artes Africanas. Fiquei entusiasmada, mas, ao mesmo tempo, me perguntava se tinha que pesquisar aquele tema, ou, se eu o pesquisava porque ter sido direcionada. Até hoje, eu não sei a resposta para esta pergunta, mas tenho a certeza de que a relação racial presente na minha vida está relacionada a isso. Sempre fui muito participativa e questionadora, buscando o que sempre estava faltando nas disciplinas. Gostava de pensar as ausências e isso trazia alguns conflitos e admirações por parte dos professores. Eu tinha um impulso de trazer essas questões em pauta. Naquele momento eles não entendiam, mas acho que hoje, conseguem compreender melhor.

AY: Quando que você começou a trabalhar com educativo em museus?
LR: Eu comecei em 2010, no meu segundo ano de faculdade. Esse período foi muito importante pra mim porque existia uma pressão na minha vida de que toda essa jornada de estudos tinha que dar certo, pois eu havia apostado muito em querer fazer uma faculdade de artes… Quando decidi que ia fazer Unifesp, eu tinha em mente que não tinha volta, era aquilo ou nada. Durante este período difícil, eu trabalhava como operadora de telemarketing e por conta do desconforto, comecei a ir atrás de mudar este cenário. Foi então que veio a Bienal (de São Paulo) com uma notícia de que haveria 500 educadores, e então entendi que aquela poderia ser a chance de realizar o sonho que a professora Regina tinha me despertado lá no Ensino Médio. Durante o processo de formação, vivemos situações bem complicadas. Havia uma dificuldade de diferenciar o que era formação e o que era avaliação. Daqueles 500 jovens, apenas 300 ficaram. Passamos quatro meses competindo entre nós e eu não entendia o porquê de tanta violência já que aquele era um processo “educativo”. Houveram momentos bem emblemáticos neste começo de atuação, os quais discorri no texto publicado no projeto “Experiências Negras” no Instituto Tomie Ohtake, o qual indico aqui como leitura.
AY: E como foi sua experiência de intercâmbio na faculdade?
LR: Na Unifesp eu queria fazer intercambio. Me aplicava em todos os editais, mas não era aceita. Em 2011 eu consegui passar numa chamada para a Universidade de Salamanca, na Espanha. Fui a primeira pessoa da minha família a entrar na universidade, a realizar uma viagem internacional, e, inclusive, a entrar em um avião. Fiquei 6 meses na Universidade de Salamanca, umas das Universidades mais antigas da Espanha… eram vários símbolos. A princípio rolou um medo de não ser aprovada nas disciplinas, mas me empenhei demais e consegui passar com notas bem altas. Foi uma experiência incrível.
AY: Você gostou das disciplinas?
LR: Mais ou menos. De algumas sim, de outras não. Se eu já tinha problemas com o ensino eurocêntrico e classista no Brasil, na Espanha era muito pior. Lembro que tínhamos um professor da disciplina de Arte Hispano-americana, que já na primeira aula nos atentou para tomar cuidado com historiadores latino-americanos, alegando que eles exageravam em fatos relacionados a colonização, ou seja, colocando a nossa produção intelectual em dúvida e negando os números absurdos dos crimes coloniais. Em outros casos, tive aulas excelentes com outros professores, como Javier Panera, do qual já abordava temáticas do contemporâneo e de ampliações de conceitos, e que me interessava mais. A gente se aproximou bastante, ele me conectou com o pessoal dos estudos brasileiros com os quais consegui realizar uma exposição em 2013 e em 2019.

AY: Após a sua graduação você foi fazer o mestrado na Espanha?
LR: Consegui ser contemplada na Fundação Carolina, e fui fazer meu mestrado de 1 ano na Espanha, em Salamanca com o professor Javier Panera. A minha pesquisa buscou compreender os percursos das artes africanas dentro dos acervos espanhóis. Nesse período também fiz um intercambio estudantil para as Canárias, que é um arquipélago espanhol localizado na região norte da África. Lá, eu conheci o Orlando Brito, diretor do Museu do Atlântico, responsável por pesquisar produções de arte não-europeias e que me auxiliou com a pesquisa. Praticamente eu escrevi meu trabalho final de mestrado nesses meses que fiquei em Canárias. Também fiz por lá um estágio na Casa África, que é um espaço de diplomacia da Espanha, para lidar com os países africanos. Foi uma experiência muito interessante, mas pude perceber o quanto a Espanha era um país racista. Eu terminei o mestrado e voltei para o Brasil pra dar continuidade a pesquisa de mestrado na Unifesp. Logo após o meu retorno, recebi uma proposta do Instituto Tomie Ohtake para trabalhar na equipe de Cultura e Participação.
AY: Mas você tinha aplicado para trabalhar lá, ou eles somente te chamaram?
LR: O Instituto Tomie Ohtake estava recebendo a exposição Histórias Afro-Atlânticas (2018), e queria mudar o quadro institucional contratando funcionários não brancos. Fiz a entrevista e passei. Foram quase dois anos na equipe de Cultura e Participação, onde desenvolvi juntamente com outros educadores, projetos dos quais me orgulho muito como o curso de Histórias das Artes Para Jovens e Adolescentes, o Programa Experiências Negras, e diversos encontros de formação de professores, etc. Conclui este trabalho no final de 2019, quando saí em viagem para a África do Sul, e retornei em março de 2021 para integrar a equipe curatorial do Instituto.
AY: O que você pesquisou no seu mestrado na Unifesp?
LR: Eu estava preocupada em investigar a primeira década da Bienal de São Paulo, e encontrei cerca de 900 documentos só nesse período, referente as presenças africanas. Fui organizando em ordem cronológica e buscando estabelecer relações geopolíticas e artísticas entre eles. Nesse processo, ficou evidente a grande a falta de publicações sobre o tema, evidenciando as lacunas sobre artistas e seus países. Desse modo, meu trabalho de mestrado se tornou um levantamento histórico e documental tanto sobre as artes modernas na Bienal de São Paulo quanto sobre as artes modernas no contexto Sul-Sul, África e América Latina.
AY: De certa forma, esse trabalho de dissertação possui a sua importância pelo fato de
apontar para essas lacunas. Talvez futuramente, outras pesquisadoras possam desdobrar em outras pesquisas ou movimentações a partir do que você produziu…
LR: Sim… foi o que pensei. Fiz todo o trabalho de reunir uma grande quantidade de documentação, que, a partir dela, outras pessoas possam iniciar uma nova pesquisa.
AY: Queria que você comentasse sobre a sua participação na Rede de Pesquisa e Formação em Curadoria.
LR: Fui convidada pela Carolina Ruoso, professora da UFMG, que estava organizando a Rede. Ela comentou que já estava fazendo um levantamento para entender a formação de curadores. Naquele momento já tinham cerca de 100 curadores brasileiros mapeados, e apenas 2 eram negros. Um absurdo para um país como o Brasil.
No meio do ano de 2020, eu compartilhei uma lista como nomes de diversos curadores e curadoras negras e indígenas, o que deu origem ao Mapeamento posteriormente publicado pelo Projeto Afro e pelo Coletivo Trabalhadores de Arte. Esse estudo surgiu a partir de um post no Facebook, onde solicitei aos meus contatos que organizássemos coletivamente, uma lista com os nomes de curadores negros e indígenas brasileiros. Então, as pessoas foram colaborando e a lista foi crescendo cada vez mais. Essa dinâmica foi interessante, pois não era a minha figura que determinava quem era curador, mas partia de um reconhecimento social e público. Este processo elenca diversas questões pertinentes, por exemplo, entender os fatores que definem a condição de um curador.
Foi a partir dos números levantados neste mapeamento, com cerca de 74 curadores negras/negros e 20 indígenas que surpreendeu os pesquisadores da Rede e por isso optamos por unir os estudos. No primeiro momento, eu comecei como pesquisadora e posteriormente passei a fazer parte do comitê. A rede está dividida em alguns grupos e em algumas frentes, sendo o Estudo dos Curadores, um deles. Atualmente, estamos com uma lista de 300 curadores, listados a partir de alguns critérios de formação, mas há outros subgrupos, como, um que pensa publicações, história das exposições, curadoria e educação… e tem os webinários que são encontros abertos com o público onde convidamos curadores para falar.
AY: Eu queria que você me contasse um pouco sobre a sua experiência como curadora, em especial, sobre a exposição Diálogos e Transgressões.
LR: Foi uma das exposições marcantes que realizei. No momento, estava lendo bell hooks, e achava que poderia pensar a partir dela. A bell hooks tem uma intenção com a afetividade nos seus processos. Ela fala sobre educação, mudanças, afeto, e sobre o amor enquanto sentimento de transformação, sobre autoestima, ansiedade… então eu entendi que eram esses motes que eu encontraria as chaves do que estava procurando. Não poderia trabalhar afastada das pessoas, e teria que criar um vínculo de afetividade. Esse era o grande ponto da exposição, pois sentia isso na minha experiência como educadora: de estar no espaço expositivo e ser vista pelas outras instâncias do museu com um olhar de subalternidade, um olhar de desprezo. Eu não queria reproduzir essa situação, e bell hooks me ensinava a ficar atenta. Eu pensava muito sobre a relação do museu não ser um espaço exclusivo para as artes, então a exposição contou com a participação de artistas e também de “não-artistas”, propondo diálogos entre participantes, do qual a instituição levou um tempo para compreender. No final, acredito que o grande diferencial desta exposição é o de demonstrar que existem outros processos de construção de exposições, envolventes e fazem mais sentido para mim. É assim que eu entendo a curadoria. Eu não tenho a crença de que uma curadoria se faz sozinha, por exemplo, sempre questiono quando a exposição é assinada por uma única pessoa. Um curador sempre está acompanhado por uma equipe, dessa forma todos deveriam assinar conjuntamente. Eu não concordo muito com o termo curador, na verdade. Acho que deveríamos pensar mais como sendo um articulador, um coordenador.