artes visuais

Sintropia e os anti-monumentos

Sintropia e os anti-monumentos.

Diante do trabalho de Jaime Lauriano, intitulado ‘nessa terra, em se plantando, tudo dá’ (2015), observamos uma estrutura de madeira geométrica com luz, reservatório de água, fertilizante, terra e uma muda de pau-brasil. A árvore, símbolo da colonização dos portugueses no Brasil, cresce conforme o tempo e se encontra dentro de uma ‘situação-limite’ físico e simbólica dentro desse volume geométrico que o aprisiona. Aos poucos, enquanto a muda se torna árvore, as suas raízes e galhos vão aos poucos quebrando essa caixa, demonstrando o seu caráter domesticador da estrutura contra a forma orgânica que se desenvolve em seu interior. Entretanto, ao violar esse volume geométrico, podemos questionar o sucesso de vingamento da planta já que ao romper com a estrutura, ela não terá mais o apoio de insumos orgânicos e das luzes artificiais das quais recebia antes. O homem, nesse caso, faz do seu invento, a própria condição para a vida.

1 
(Jaime Lauriano. nessa terra, em se plantando, tudo dá
, 2015. madeira, vidro, reservatório de água, climatizador, termômetro, sistema de irrigação e fertilização, temporizadores, terra, abudo e muda de pau-brasil. 200x 50 x 50 cm. foto Mario Grisolli)

Pode parecer trágico, ou até mesmo pessimista essa breve interpretação no trabalho de Lauriano, entretanto, proponho avançar nas discussões sugeridas pelo próprio objeto do artista. O volume feito de madeira, vidro e luzes de LED são materiais comumente encontrados no nosso cotidiano. Robert Smithson, no seu célebre texto Entropia e os novos monumentos (1966) já indicava as características entrópicas nos materiais utilizados pelos artistas da arte minimalista como Donald Judd, Robert Morris, Dan Flavin, entre outros. Smithson, afirma que esses novos monumentos construídos com lâmpadas, plásticos, vidros e metais, não estão preocupados em celebrar um passado, tampouco um futuro (SMITHSON, 1996, p.10). Estão distantes das intenções celebrativas das grandes figuras esculpidas em bronze ou em mármore das quais contemplam ídolos divinos ou até mesmo heróis forjados.

Ao invés de fazer-nos lembrar o passado como os velhos monumentos, os novos monumentos parecem nos fazer esquecer o futuro. Ao invés de serem feitos de materiais naturais, tais como mármore, granito, ou outros tipos de pedras, os novos monumentos são feitos de materiais artificiais, plástico, cromo e luz elétrica. Eles não são construídos para as eras, mas contra as eras. Eles estão envolvidos numa sistemática redução de tempo para frações de segundos ao invés de representar os longos espaços de séculos. (SMITHSON, 1996, p.11. Tradução de Renata Lucas.)

A entropia, trata-se da segunda lei da termodinâmica, a qual compreende que a organização da energia dentro de um sistema, tende à desorganização e ao seu esgotamento. Com a descoberta da entropia, cientistas entendiam a partir da teoria do Big Bang, que o universo se expandia e que em algum momento ele interromperia seu movimento. Portanto, as estrelas iriam se apagar e o universo congelaria em um processo de desativação. (DI CORPO, U; VANNINI, A. 2012, p. 92) Em uma situação mais próxima do nosso cotidiano, a entropia se aplica ao observar a temperatura de um copo de água quente se igualando com a do ambiente. A energia térmica nesse caso, é irreversível pois não podemos retornar a sua alta temperatura, ao menos que se injete energia dentro desse sistema. Seria necessário portanto, a calefação a partir da combustão ou aquecimento elétrico para que a temperatura do sistema volte como anteriormente.

No trabalho Spiral Getty (1970) de Robert Smithson, o artista realiza uma grande intervenção na paisagem partindo de uma construção auxiliada por máquinas para produzir um desenho com toneladas de pedras dentro do lago Great Salt Lake localizado em Utah1. Mesmo afirmando que a land art tratava-se de um olhar para a natureza a partir da utilização de materiais naturais na paisagem, é preciso se atentar de qual olhar que Smithson propõe: um olhar ocidental de intervenção a partir de máquinas que deslocam toneladas de pedras para uma determinada região. Portanto, o desenho formado pelas pedras, encontra-se deslocado de um contexto natural da paisagem, o que acaba resultando na sua própria condição efêmera. Spiral Getty, foi adquirida pela Dia Art Foundation, tornando-se responsável em preservar o trabalho. Ao analisar as imagens aéreas de monitoramento das pedras dentro do lago durante uma linha anual temporal, fica evidente a atribuição de estatuto de monumento Spiral Getty acaba adquirindo, essa mesma característica monumental condenada pelo artista na década de 1960. Como podemos ver na imagem abaixo, na fotografia realizada por um visitante no ano de 2016, encontramos a escultura em outra condição, pois com o tempo, houve um recuo da água do lago. As pedras trazidas pelo artista, agora ficam localizadas numa região seca, sendo cotidianamente escoltada pela fundação para a sua preservação, proibindo todo visitante de retirar qualquer tipo de material.2 Spiral Getty, adquire, a mesma condição de existência do pau-brasil no trabalho de Jaime Lauriano – a dependência para que se mantenha uma estrutura da qual não partilha naturalmente daquele espaço, uma desconexão do ser humano com a natureza.

2

Steven Zucker. Robert Smithson, Spiral Jetty, 1970, Rozel Point, Great Salt Lake, Utah. (photograph taken June 2016).

A perspectiva entrópica na paisagem, é uma perspectiva vertical e hierárquica do homem sobre a natureza, responsável em intervir de uma maneira que seja convencional às necessidades próprias. Temos como exemplo as práticas de agricultura convencional de monocultura, responsáveis em produzir toneladas de soja no Brasil, além do desmatamento desenfreado e da grande inserção de agrotóxicos nas terras. A condição da monocultura, parte de uma perspectiva entrópica, pela qual, a terra recebe energia externa através da irrigação, utilização de máquinas e inserção de veneno para eliminação de pragas. Contudo, essa mesma terra aos poucos vai se desgastando ao ponto de torná-la improdutível depois de um certo tempo. O modo como desenvolvemos a agricultura, demonstra uma modernidade que se estabeleceu a partir da dominação da paisagem natural em prol do avanço da cultura. Ao mesmo tempo em que o ocidental separa essas duas esferas (natureza e cultura), ele ignora as condições de relação entre humano e natureza.

Seus modernos esquemas territoriais e desenhos espaciais baseavam-se na concepção de que a floresta era uma terra vazia e homogênea, terra nullius/tabula rasa que podia ser racionalmente domesticada, planejada e reprojetada como um todo. No terreno, os impactos dessa ideologia militarizada e masculina de controle total e exploração da natureza foram extremamente violentos.3 (TAVARES, P. 2018. tradução nossa)

A citação acima advém de um texto do arquiteto Paulo Tavares intitulado In the ruins of the forest (2018), o qual aborda em como a perspectiva arquitetônica moderna foi violenta ao separar as noções entre humano e natureza e ignorando que a floresta e os animais também possuem uma perspectiva de designo do seu próprio ambiente. Posteriormente, essa pesquisa se desdobra no projeto intitulado Trees, Vines, Palms and Other Architectural Monuments (2013), o qual segue em andamento.

3
Imagens de arquivo da organização da aldeia xavante. Fonte: https://www.paulotavares.net/treesvinespalms-text. Acesso em: 4 dez. 2019)

Nesse projeto, o arquiteto retoma arquivos de terras dos A’uwe, povo xavante que viviam na região central do Brasil e dos quais foram realocados violentamente durante os anos de 1950 e 1960 para a ocupação do território com intuito da inserção de plantação de soja nessas terras. A partir do processo de recuperação de imagens e documentos, Tavares investigou a relação ‘urbanística’ da aldeia que se dava na formação de construções em forma de ‘U’. Portanto, ao analisar as imagens atuais a partir de satélites dessa mesma região, o arquiteto notou algumas formações vegetais coincidentes com o desenho urbanístico do povo xavante.

4

Paulo Tavares, levou alguns remanescentes que viveram nessa região para poder ouvi-los, e descobriu que a área de formação vegetal coincidia com o território da antiga aldeia. Além disso, eles conseguiam identificar cada espécie de planta dentro da vegetação de acordo com as utilidades práticas de seu cotidiano como abrigo, alimento, remédio e outras relações estabelecidas. A floresta que cresceu no círculo, demarcava o território que as construções ocupavam, o que fez com que o arquiteto atribuísse um olhar decolonizado para aquela vegetação. A proposta desse novo olhar, é designar essa floresta como uma ruína arquitetônica do povo xavante, e com isso, Tavares organiza uma petição direcionada à ONU e ao IPHAN para que essa vegetação seja tombada como patrimônio arquitetônico, vetando qualquer tipo de desmatamento dessa área, além de garantir o território de volta para os A’uwe. Desse modo, muda-se o olhar da floresta como um simples objeto, entendo-a como um sistema que estabelece uma multiplicidade de conexões complexas com o ser humano.

A mudança de perspectiva em relação à paisagem natural, além de necessário para propor alternativas para as nossas crises ambientais, aos poucos vem ganhando forças. O agricultor suíço radicado no Brasil, Ernst Gotsch iniciou uma prática nas suas terras – quase improdutíveis na época em que adquiriu – a qual ele nomeou como agricultura sintrópica. Popularmente conhecidas como agroflorestas, a agricultura sintrópica entende o sistema como um todo, partindo de uma atividade que seja ressonante ao mecanismo natural da floresta para a produção de alimentos. Diferentemente da agricultura convencional, na agrofloresta, quanto mais se planta, mas energia a terra adquire, não havendo necessidade de rega, nem de inserção de agrotóxicos pois dentro desta perspectiva de plantio, entende como importante toda biodiversidade de flora e também da fauna como agentes co-participantes dentro desse sistema. Nesse caso, os próprios animais dão conta de eliminar algumas pragas, ou até mesmo uma planta que acaba protegendo outra de acordo com o espaço em que ocupam. A terra adquirida por Gotsch, após alguns anos de recuperação, foi responsável em retomar a rotina – até então escassa – de chuvas na região seca do interior da Bahia, além de renascer alguns rios e riachos4. (GOTSCH, A. 2015)

Na 32ª bienal de São Paulo, o artista Jorge Menna Barreto organizou um trabalho intitulado Restauro (2016). Esse projeto tratava-se de um restaurante que funcionaria durante o período da exposição, tendo o preparo de sua comida advinda de alimentos fornecidos por produtores de agroflorestas. A refeição variava de acordo com a produção desses agricultores locais, dos quais distribuíam frutas, verduras e legumes muitas vezes não tão conhecidas ao público geral. Menna Barreto, pontua a alimentação e a circulação de alguns alimentos como questões culturais colocando o fato de nós comermos maçã ao invés de araticum, como o diagnóstico de uma condição cultural adquirida. Restauro entende-se desse modo, como um espaço de educação ambiental e alimentícia, sendo muitas vezes, uma oportunidade para o público experimentar diversidades de alimentos como PANCs5, ou até mesmo frutas e vegetais das nossas regiões dos quais pouco conhecemos. Jorge Menna Barreto, encara a complexidade da cadeia alimentícia desde a produção até a escolha dos alimentos, atribuindo uma perspectiva de responsabilidade no ato de comer6. Segundo o próprio artista: “Entendendo o nosso sistema digestivo como ferramenta escultórica, os comensais tornam-se participadores de uma escultura ambiental em curso, na qual o ato de se alimentar regenera e modela a paisagem em que vivemos7.

5
Visão do Restauro
(2016)) na 32ª Bienal de São Paulo. Fonte: http://cargocollective.com/jorgemennabarreto/Restauro-32-Bienal-SP. Acesso em: 4 dez. 2019.)

A perspectiva do Restauro inclui uma visão complexa de conexão entre meio ambiente, sistema digestivo, comida e cultura. Entende a floresta como um sistema complexo e horizontal, assim como no trabalho de Paulo Tavares. A perspectiva da sintropia, propõe compreender o cosmo como o próprio sistema de energia, e que o progresso do homem branco, com seu projeto modernista não pode fazer mais sentido diante das nossas crises ambientais. O ser humano, a partir de uma perspectiva sintrópica, entende seu corpo acoplado com o da natureza, esse corpo indissociável que faz girar todo o sistema juntos – não um corpo que o domina, mas integra.

Na série de trabalhos Orgânicos de Luciana Magno, podemos observar a conexão do corpo da artista com a paisagem a partir de performances orientadas para o vídeo e fotografia. Em Figueira selvagem (2014), observamos uma imagem que une o corpo da artista nos troncos de uma figueira, onde seus cabelos acompanham o movimento das folhas e dos cipós. Para além de uma forma de mimetização – técnica muito utilizada por animais para poder fugir de predadores – o que temos no vídeo é uma integração do corpo de Luciana Magno com esse sistema a partir da ressonância de seus movimentos, trazendo uma imagem que indica uma integração entre eles.

6 
Luciana Magno. Figueira Selvagem
, 2014, performance orientada para vídeo e fotografia, 3’02’’.

Pensar em sintropia, seria pensar na integração humana com o cosmo de uma forma que altera a nossa perspectiva epistemológica. Segundo os cientistas Ulisse Di Corpo e Antonella Vannini, a sintropia, termo inventado em 1941 pelo matemático Luigi Fantappiè8, seria a teoria responsável em propor uma outra perspectiva do tempo a partir de uma revisão na equação da relatividade cunhada por Albert Einstein9 (DI CORPO; VANNINI, 2012, p. 90). O tempo da sintropia, portanto, estaria mais perto do que os gregos entendiam como aion, um tempo de coexistência entre passado, presente e futuro, e não o tempo linear de kronos (DI CORPO; VANNINI, 2012, p. 97). Desse modo, essa nova perspectiva nos tira da ambição dos avanços do progresso modernista, onde a linha do tempo avança cada vez mais para a sua própria destruição. Muitos povos indígenas a partir da sua cultura, escapam das celebrações de monumentos e objetos eternos. O conhecimento está na própria floresta, nos próprios corpos que manifestam sua cultura através de sua integração com um cosmo. A sintropia é um desvio do nosso olhar colonizador. É fechar os olhos para monumentos celebrativos dos nossos “heróis” e entender que uma árvore, um rio ou uma pedra, trata-se da nossa cultura e da nossa história (não-linear).

Referências Bibliográficas:

Agenda Gotsch. Life in syntropy. 2015. (15min 28seg) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gSPNRu4ZPvE. Acesso em: 15 out. 2019.

ARTE!Brasileiros. Paulo Tavares: Memória da Terra. 2018. (33min 37seg). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T2EmFLqCSDU. Acesso em: 1 dez. 2019.

Bienal de São Paulo. #32bienal (Ativação de obra) Jorge Menna Barreto: Restauro. 2016. (4min 25seg). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IXvj_x0qs7U. Acesso em: 1 dez. 2019.

DI CORPO, Ulisse; VANNINI, Antonella. Syntropy, cosmology and life. Syntropy. Vol.1, 2012. Disponível em: http://www.sintropia.it/journal/english/2012-eng-1-6.pdf. Acesso em 10 out. 2019.

Dia Arte Foudation. Artist on Artist Lecture – Rayyane Tabet on Robert Smithson. 2019. (51min 16seg). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=joShB4TQ1XM. Acesso em: 4 dez. 2019.

Escola da cidade. Entrevista: Paulo Tavares. 2017. (17min 52seg). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nZIAXcnBWTU. Acesso em: 1 dez. 2019.

SMITHSON, Robert. Entropy and the new monuments (1966). In: FLAM, J. Robert Smithson: The collected writings. Los Angeles: University of California Press, 1996.

TAVARES, Paulo. In the forest ruins. In: e-flux. 2018. Disponível em: https://www.e-flux.com/architecture/superhumanity/68688/in-the-forest-ruins/. Acesso em: 2 dez. 2019.

1Robert Smithson utilizou cerca de 7 toneladas de pedras para realizar a escultura Spiral Getty.

2A fundação Dia adquiriu o trabalho Spiral Getty através da doação de Nancy Holt, esposa de Smithson em 1999. A partir de então, a instituição se compromete a preservar a escultura para as futuras gerações proibindo qualquer tipo de intervenção pelos visitantes. Disponível em: https://www.diaart.org/visit/visit/robert-smithson-spiral-jetty. Acesso em 4 dez. 2019.

3Paulo Tavares. In the forest ruins. Disponível em: https://www.e-flux.com/architecture/superhumanity/68688/in-the-forest-ruins/. Acesso em: 4 dez. 2019.

4No espaço de alguns anos, Ernest Gotsch converteu mais de 1.200 acres de terra degradada em uma floresta tropical produtiva, produzindo cacau, entre outras culturas.

5PANCs é a sigla para “Plantas Alimentícias Não Convencionais”. Denominada pelo biólogo Valdely Kinupp, trata-se de plantas comestíveis que não são produzidas e comercializadas em larga escala e que entretanto, podemos encontrar com muita facilidade em jardins, quintais e terrenos baldios.

6Para saber mais sobre as relações de escultura ambiental proposta por Jorge Menna Barreto, assistir à entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IXvj_x0qs7U.Acesso em 2 dez. 2019.

7Portfólio do artista Jorge Menna Barreto. Disponível em: http://cargocollective.com/jorgemennabarreto/Restauro-32-Bienal-SP. Acesso em 6 de dez. 2019.

8O termo ‘sintropia’ vem do grego syn = convergências, tropos = tendência.

9A equação de Albert Einstein é uma equação quadrática com duas soluções, uma positiva com o tempo movendo para frente e outra negativa com o tempo movendo para trás. A solução negativa foi rejeitada como impossível pois implicava na retro causalidade, algo impossível de acontecer dentro de uma perspectiva entrópica. (DI CORPO; VANNINI, 2012, p. 90)

Um comentário em “Sintropia e os anti-monumentos”

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s