Letícia e Cirillo são irmãos gêmeos nascidos e criados em Porto Ferreira, cidade interiorana de São Paulo, próximo de Ribeirão Preto. A essas duas individualidades, nasce uma terceira, o substantivo próprio do sobrenome de ambos, o qual dá origem a um sujeito artista, uma nova identidade chamada Tangerina Bruno. Por detrás de todo esse mistério até pela interrogação de gênero causada pelo tratamento do sobrenome desses dois – tangerina sendo um substantivo feminino e bruno sendo um substantivo masculino – temos uma pintura gerada por quatro mãos e duas cabeças, como os dois próprios dizem. Essa particularidade faz com que o processo artístico se dê através de muito diálogo, escuta, proposição e convivência. Um processo, que desvia das individualidades egóicas artísticas, abdicando-se em prol de um coletivo, mesmo que de duas pessoas.
Corpo encharcado de óleo, 2018. acrílica sobre tela. 160 x 110 cm.
A obra de Tangerina Bruno é pautada sobretudo pela pintura, por mais que tenham explorado ultimamente, desdobramentos em outras linguagens como objetos e esculturas. A situação geográfica é de extrema importância, a qual acaba contaminando a temática trazida pelas imagens da dupla. Porto Ferreira, é conhecida por ser a capital da cerâmica artística e da decoração, território onde Letícia e Cirillo iniciaram e atuaram profissionalmente, produzindo e dando cursos nessa área. Esse embrião pode ser notado na pintura através dos elementos ornamentais dispostos e representados nos azulejos, no modo como modulam as figuras – sempre com contornos muito bem delimitados – nas cores chapadas e linhas orgânicas constituindo, de uma maneira bem específica, situações do cotidiano da dupla através do aspecto gráfico da linha. Outro elemento que evidencia o regionalismo do interior é a arquitetura e a decoração representada nas suas casas – alguns elementos como chuveiro, filtro de água, detalhes de janelas, etc; acabam ativando uma memória afetiva de muitas pessoas do interior do estado de São Paulo por serem hábitos e objetos populares do cotidiano destas.
A imagem trazida na pintura, por mais que aproxime da tentativa de representação de corpos, ela se distancia de uma noção de representação de uma certa realidade, isso porque em certos momentos, temos a construção de elementos ornamentais em azulejos, tecidos, e outros objetos dos quais acabam adquirindo uma vida própria, ou às vezes chegam a comentar todos os aspectos subjetivos das figuras humanas. No caso de Corpo encharcado de óleo (2018), temos como figura principal – no primeiro plano – o próprio Cirillo abrindo a torneira do chuveiro, e olhando para cima. Não sabemos se olha para o próprio chuveiro, ou para os azulejos, dos quais ocupam a maior parte da área da pintura (quase 2/3 da tela). Nesses azulejos, podemos notar a representação de uma situação que está suspensa no tempo – não sabemos se é pretérito ou futuro, de qualquer forma, mostra uma situação de um rapaz – ao que indica, o próprio Cirillo – recebendo um telefonema do qual a notícia o deixa incomodado, ou preocupado diante da interpretação de sua mão apoiada na cabeça. É como se esse “objeto azulejo”, estivesse comentando ou projetando a mente do sujeito – subjetivação do objeto, ou que todos os pensamentos da figura humana representada no chuveiro, fossem projetadas nos azulejos do banheiro, uma espécie de integração entre corpo e arquitetura.
Detalhe: Corpo encharcado de óleo, 2018.
Essa subjetivação dos objetos, pode ser evidenciada ao relacionar os processos de produção da dupla Tangerina Bruno. Toda situação representada na pintura, advém, primeiramente de uma série de fotografias ou frames realizadas por eles mesmos. O frame indica, ou aponta para uma certa performance do corpo representado, que fica mais evidente no trabalho Série para uma pintura, 2018, onde Letícia e Cirillo constroem uma paleta de cor partindo das enormes quantidades de fotografias realizadas para a investigação do assunto de sua pintura. Essa performatividade, para além da imagem representada (teatralidade), se torna presente também durante o processo de execução do quadro. Pelo fato de serem duas pessoas trabalhando em prol de um único objeto, é indispensável a necessidade do diálogo para a tomada de decisões, o que torna desviante o processo em comparação com outras artistas. Observando de perto a dia-dia no ateliê, pude atentar o constante diálogo dos irmãos referente a qualquer tomada de decisão: desde que figura representar, de que forma, como, qual será a cor, etc. Em alguns momentos, são utilizados até mensagens coladas na própria tela, referindo-se como tags de comentários à cerca da região da imagem. Essas tags vão se acumulando, transformando-se numa caixa de diálogo que ao invés de ser um diálogo somente entre Letícia e Cirillo, passa também a ser um diálogo com um terceiro elemento que é, Tangerina Bruno.
Detalhes das tags utilizadas durante o processo de pintura
Detalhe: Série para uma pintura, 2018. revelação sobre papel fotográfico
É importante notar também que o diálogo, transpassa para a linguagem da palavra, e aos poucos vai ocupando uma comunicação imagética. No caso do trabalho Água que fura (2017), foram muitas mudanças ocorridas durante o processo, pois cada um trabalha a pintura numa certa região da tela, e tendo a necessidade de enxergar uma totalidade, aos poucos vão se mudando as cores, ou a própria imagem, a fim de integrar um resultado que agrade aos dois – ora, se essa constante dialética que acaba resultando num movimento de mudança da pintura, comunicação com tags, poses fotografadas, não indicam aí, uma performatividade do próprio gesto de pintar, para além de uma imagem somente performativa.
Processo: Água que fura, 2018. acrílica sobre tela
A pintura de Tangerina Bruno, são muitas numa só. Podemos perder o nosso olhar, a fim de procurar uma unidade ou uma única subjetividade – não a encontrará, pois se trata de um corpo coletivo, de um todo disjuntivo. Porém, toda essa situação teatral trazida pela imagem, torna-se mais clara, ao compreender o processo também como obra: essa dialética, essa pluralidade está presente no cotidiano dos dois, tornando a pintura performativa diante de todo seu contexto seja nos frames fotográficos auto-representativos, nas tags comentadas durante a pintura, no constante diálogo no processo, ou na subjetivação dos objetos na imagem. A performatividade nesse caso, é de um terceiro corpo, um corpo que ao mesmo tempo são dois, o corpo da (ou do) Tangerina Bruno.
Água que fura, 2017-18. acrílica sobre tela. 160 x 110 cm.